Se há uma certeza no mundo tributário pós-pandemia é que todos os governos precisarão arrecadar mais. As medidas de estímulo econômico durante a pandemia, além dos evidentes gastos com saúde pública, resultaram empressão orçamentária e endividamento dos governos no curto prazo, motivando o debate sobre o aumento da carga tributária mundo afora para se pagar a conta da pandemia.
Dentre as diversas possibilidades em discussão, destaca-se a tributação unilateral de transações digitais por diversos países. No entanto, existem duas vertentes: tributação descoordenada ou unilateral defendida pelo comissariado da União Europeia e a padronizada e coordenada defendida pela OCDE. Esta última requer consenso multilateral e enfrenta dificuldades políticas e técnicas.
Além deste cenário, a perspectiva de aumento na alíquota corporativa federal norte-americana de 21% para 28% e a reformulação das regras de tributação de lucros auferidos no exterior por multinacionais americanas certamente devem afetar o ambiente tributário global.
Pressão sobre as multinacionais - Durante toda a última década, a pressão e a narrativa política no ambiente do G20 influenciaram a opinião pública no sentido de que empresas multinacionais, e não países, seriam culpadas pelo que nos permitimos chamar de “guerra fiscal internacional”. Foi esse o contexto da versão 1.0 do Projeto BEPS (Base Erosion and Profit Shifting) da OCDE, que promoveu regras para evitar a “erosão de base tributária” e o “desvio internacional de lucros” - uma narrativa ainda frequente em países com altas cargas sobre trabalhadores e consumidores.
Na esteira deste movimento, o foco da opinião pública se manteve também sobre as gigantes do mundo digital, a despeito de análises mais profundas que identificam, não apenas na assimetria de tratamentos tributários, mas também nas diferentes políticas tributárias de diversos países que competem entre si para atrair capital financeiro e humano, a principal causa da erosão de base que se observa mundo afora. Durante a pandemia, com os lucros extraordinários auferidos pelas Big Techs, a pressão política aumentou, assim como as medidas unilaterais adotadas por diversos países para tributar “serviços digitais” ou operações B2C conduzidas por meio ou com conteúdo digital.
Pressão sobre capital e renda - Em diversos países, os rendimentos do capital se sujeitam à tributação inferior à que incide sobre os rendimentos do trabalho. A teoria é que há maior eficiência na tributação do consumo e não do capital, dada a mobilidade internacional do fator capital. Assim, é provável um movimento global coordenado de incremento de carga sobre o capital no mundo pós-pandemia, evitando-se incrementar a carga tributária sobre consumidores e trabalhadores, com exceção das faixas superiores de renda.
A política tributária dos EUA exerce influência global, representando padrão que orienta debates na OCDE e nos mais diversos países. Assim, as perspectivas tributárias nos EUA são muito relevantes, não apenas para as empresas que operam naquele mercado, mas para quaisquer multinacionais, incluindo-se as brasileiras. Nos EUA, assim como na maioria dos países desenvolvidos, a desoneração do capital e dos lucros das empresas vinha sendo, até antes da pandemia, significativa. Por outro lado, o orçamento dos Estados Unidos foi e será substancialmente afetado por medidas de auxílio ou estímulo referentes à pandemia, com dispêndios que superam a casa de trilhões (2020-2021). As medidas arrecadatórias, de incremento de carga, já anunciadas pelo governo Biden tendem a influenciar ações correspondentes por parte de diferentes países, inclusive no Brasil, onde neste momento se considera a reforma não apenas da tributação do consumo, mas também do capital e da renda.
É provável que permaneça o dissenso sobre tributação digital, a despeito dos esforços da OCDE, e que se multipliquem medidas unilaterais, tributos sobre transações digitais com diferentes características, por diferentes países, com base na localização de consumidores. A incidência econômica de tais tributos sobre transações digitais tende a recair sobre os consumidores, ainda que a narrativa seja a de “justiça tributária”, de tributação das multinacionais e do capital. Por outro lado, pode-se chegar a um consenso sobre uma “tributação mínima global” de multinacionais, feita no país-sede aos moldes dos EUA, conciliando a iniciativa do Pillar 2 da OCDE com as regras norte-americanas (“GILTI”). Caso os EUA aumentem sua carga de imposto de renda federal, a pressão sobre a narrativa de justiça tributária no que concerne à “subtributação” de multinacionais tenderia a arrefecer. Nesse cenário, ganharia ênfase o incremento da tributação de ganhos de capital e de indivíduos de alta renda. É possível que também ganhem destaque outros tributos sobre propriedade, ou sobre emissão de carbono.
Vale notar que as medidas unilaterais adotadas por países desenvolvidos e as multilaterais propostas pela OCDE não são tão dissimilares de práticas brasileiras de tributação de remessas internacionais, ou de preços de transferência, historicamente criticadas pelo mundo desenvolvido. A diferença, porém, é nítida na dimensão da carga: enquanto muito se debate e tende a não haver consenso sobre tributação com alíquotas inferiores a 5%, o Brasil impõe 15% ou 25% de IR-Fonte e outros tributos que, em conjunto, representam “custo Brasil” efetivo e tipicamente não recuperável no exterior. O mesmo se pode observar quanto à tributação global ao estilo americano GILTI ou sob a Pillar 2. Enquanto o mundo considera os efeitos de impor alíquotas mínimas de 13%-15% no país-sede, ainda que inferiores à alíquota nominal da sede, o Brasil permanece com sua tributação em bases universais (TBU) com sua alíquota nominal geral de 34% (para não-financeiras e eventualmente 25%) e regras incoerentes quanto ao reconhecimento de lucros sem disponibilidade econômica e à qualificação de paraísos fiscais, regimes privilegiados e de subtributação.
Esse contexto pode desviar a atenção do legislador brasileiro da urgência de se rever a tributação de operações transnacionais em geral, a fim de se racionalizar a carga tributária e aumentar a competitividade das empresas do país.
O atual contexto tributário global deveria ser cuidadosamente observado pelo Brasil. Os contribuintes brasileiros devem antever tais impactos em seus planejamentos estratégicos, tanto os estrangeiros que operam no Brasil, quanto as multinacionais brasileiras que operam em mercados onde certamente haverá mudanças.
Os movimentos de reforma e os sistemas tributários das grandes economias desenvolvidas do G7 e G20, tanto entre os membros da OCDE quanto entre os não-membros de maior relevância como China e Índia, devem ser considerados pelos legisladores brasileiros no debate de reforma da tributação do consumo, da renda, do capital e da propriedade. Os diversos setores econômicos devem estar atentos para influenciar o nosso legislador a idealmente não adotar um viés arrecadatório nesta consideração, sob argumento de se tentar equilibrar o déficit causado pela pandemia, mas, ao contrário, observando-se este contexto de mudanças tributárias globais para privilegiar a competitividade das empresas brasileiras em um mercado extremamente competitivo frente às possibilidades de consumo global fortemente alavancadas pela interconectividade do ambiente digital.
Para além da urgente simplificação e racionalização do nosso sistema tributário, o Brasil também precisa implementar reformas pró-crescimento e pró-competitividade, que sigam as melhores práticas internacionais, inclusive no que diz respeito aos estímulos à inovação e produtividade, e que podem ser poderoso vetor para a retomada da economia pós-pandemia e para o crescimento sustentável do país, viabilizando uma maior inserção das empresas brasileiras nas cadeias globais de valor.
Sócio e líder de Auditoria, Governança, Riscos e Compliance, PwC Brasil
Tel: 4004 8000