Imagem aérea de drone da Fazenda Bacaba, localizada em Aparecida do Rio Negro (TO) (Foto: Bio2me)
O grupo For Farmers do Programa Soja Sustentável do Cerrado (PSSC) é um grande exemplo do valor que os produtores rurais podem agregar quando estão no centro do debate sobre inovação e tecnologia no setor. Na experiência do Land Innovation Fund (LIF), correalizador do PSSC ao lado do PwC Agtech Innovation, a aproximação com os produtores rurais significou uma virada de chave na construção de novos projetos, que contam com apoio estratégico também da Cargill, Embrapii, Embrapa e CPQD.
E uma dessas histórias é a dos produtores Lígia Pedrini, Luis Fernando Devicari e Walter van Halst, que colaboraram com a startup Bio2me. A própria greentech foi fundada por um produtor rural, o empreendedor Cláudio Fernandes, que viu a oportunidade de formar um ecossistema de negócios em torno do ativo ambiental que era a sua fazenda.
Hoje, a Bio2me realiza voos de drone para clientes e, principalmente, para identificar o perfil das fazendas que pretende arrendar. O objetivo é apoiar a gestão da reserva legal e identificar o potencial para atividades da bioeconomia (a exemplo da exploração de castanhas e do processamento de produtos da mata preservada, como baru e fava d’anta). Esses produtos são usados nas indústrias de alimentos, cosméticos e medicamentos.
“Na indústria de alimentos, o baru se destaca pelo alto teor proteico e pelos seus antioxidantes, enquanto no mercado de cosméticos tem sido comparado ao óleo de argan. Além disso, conseguimos dar uso para a polpa e a casca, que se transformam em suplemento para o gado, carvão ecológico e/ou biochar”, diz Fernandes.
Baru, fruto do baruzeiro, árvore nativa do Cerrado brasileiro (Foto: Bio2me)
Fernandes despertou para o potencial do negócio quando se viu, em 2019, diante da necessidade de decidir o que fazer com a herança do pai: uma propriedade praticamente fechada em Luziânia (GO). Na visita à fazenda, o vizinho não teve dúvidas em recomendar que ele suprimisse 80% da vegetação nativa, o que é permitido por lei no bioma Cerrado, para começar a criar gado. A sugestão ia contra o desejo do pai e a visão de negócios de Cláudio. A única árvore que ele removeu foi um eucalipto que estava ameaçando a casa da sede, construída numa clareira em meio à área preservada. “Eu falei para o funcionário que podia cortar o eucalipto de frente pra casa, mas que teríamos de plantar outra árvore na fazenda”. Foi então que ele conheceu o baruzeiro, árvore escolhida pelo funcionário e nativa da região.
De volta à casa da mãe, em Brasília, ela perguntou se ele já havia provado castanha de baru e voltou da cozinha com um exemplar. O pai de Cláudio, que adorava baru, morreu sem saber que tinha a castanha na própria fazenda. Mais tarde, nos mercados tradicionais de São Paulo, Cláudio descobriu que o quilo da castanha custava de R$ 150 a R$ 200. A descoberta revelou um potencial de investimento que ele ainda não havia considerado.
O baru adulto, típico do Cerrado, dá cerca de 150 quilos de fruto por safra e pode ser aproveitado quase que integralmente. A cada 30 quilos do fruto, é possível extrair um quilo de castanha. Além disso, a polpa e a casca são aproveitadas na indústria de nutrição animal e fertilizantes. Da muda até chegar ao estágio produtivo, a árvore leva sete anos.
Estudando mais a fundo o mercado, o desafio foi ficando mais claro. Faltava fornecedor de mudas, fornecedor de castanha com volume e frequência adequados, coletores treinados, indústria de transformação. E o empreendedor-produtor não teve dúvidas: se quisesse avançar, precisaria operar o negócio do campo à mesa.
Em 2022, Fernandes fundou a startup Bio2me com os sócios Marcio Campos e Patrícia Dotto. Em 2023, a empresa alcançou um marco importante ao entrar para o PSSC. “A entrada no PSSC validou que somos uma startup do agro – porque a floresta em pé também é agro e vem despertando o interesse de outros produtores”, afirma Campos.
A estimativa dos sócios é de que um hectare de baru possa gerar R$ 45 mil ao ano a partir da venda da castanha. Além disso, os empreendedores acreditam que será possível somar ganhos indiretos, advindos de créditos de carbono da área preservada, por exemplo. “A gente acredita que o baru vai ser para o Cerrado o que o açaí foi para a Amazônia”, emenda Campos.
Da esq. para a dir. Marcio Campos, CFO, e Cláudio Fernandes, CEO da Bio2me (Foto: Bio2me)
Desde o início de sua trajetória, a Bio2me foi em busca de parceiros que pudessem apoiar seu ambicioso projeto de criar uma cadeia sustentável para diferentes bioativos, começando pelo baru. A Embrapa foi o primeiro deles, com vistas à produção de mudas em viveiro, tanto para plantio em áreas próprias (arrendadas ou compradas) quanto em áreas de terceiros. Desde então, a Bio2me construiu um viveiro em Luziânia e comercializou mais de 1.500 mudas de árvores nativas.
Para fortalecer sua rede de coletores, a Bio2me optou por criar uma organização sem fins lucrativos, que capacita comunidades do entorno das fazendas. Assim, nasceu em 2023 a Be+, cujos treinamentos já beneficiaram 150 pessoas. A expectativa é que essa força de trabalho, de três regiões e quatro comunidades diferentes, possa fornecer à startup mil toneladas de castanha em 2024. A distribuição se dá a partir de um centro em Vila Boa (GO), que opera desde 2023 e permite que o produto processado e embalado chegue aos mercados de Goiás, São Paulo e Rio de Janeiro.
No negócio de alimentos, a castanha é vendida com a marca Vista Produtos Sustentáveis. Já no caso dos produtos farmacêuticos e cosméticos, o processamento fica por conta de parceiros de negócios, um estabelecido em Minas Gerais e outro no Piauí.
Uma vez no PSSC, a Bio2me iniciou um projeto para mecanizar a remoção do baru de sua casca, em parceria com Embrapii, Sebrae e Instituto Federal da Paraíba (IFPB). Com um orçamento de R$ 570 mil, a iniciativa tem por objetivo desenvolver um equipamento de extração automática em escala industrial.
Na vertical de tecnologia, a Bio2me captou pouco mais de R$ 1 milhão para investir em uma solução de rastreabilidade e monitoramento inteligente de espécies de bioativos encontrados nas propriedades. Usando sensores remotos instalados nas árvores, essa tecnologia transmite dados diretamente para uma plataforma de monitoramento. Originalmente desenvolvida para resolver um problema interno, a solução demonstrou ter alto potencial de mercado, o que culminou na fundação da spin-off ID2T em parceria com o CPQD.
Campos explica que os produtores interessados em trabalhar com a Bio2me podem operar de várias formas. Numa primeira modalidade, a startup arrenda a terra com contrato de opção de compra e explora a área por conta própria. Em outra, estabelece parceria com os produtores, com operação conjunta e compartilhamento de risco. Também compra a produção num terceiro modelo, sem se envolver no processo.
Avaliado em US$ 186 bilhões em 2023, o mercado de bioativos está projetado para alcançar US$ 317 bilhões em 2030, conforme dados da consultoria Grand View Research. No Brasil, os bioativos ainda são pouco aproveitados. Além do baru, a Bio2me mapeou outros cinco produtos com potencial comercial que deseja explorar e já trabalha também com fava d’anta, baunilha do Cerrado e pequi.
2020
dealização da Bio2me
2021
Abertura da Vista Produtos Sustentáveis
2022
Abertura formal da Bio2me
Captação de R$ 3 milhões com investidores-anjo
2023
1ª expedição em busca de fazendas com potencial para produção de bioativos
1° curso de manejo sustentável
Seleção para o 5° ciclo do PSSC
Início da operação com baru
Instalação do centro de distribuição em Vila Boa (GO)
Construção do viveiro de mudas nativas em Luziânia (GO)
Início da produção de carvão ecológico e biochar a partir da polpa e casca do baru
2024
Criação da Be+, braço socioambiental da Bio2me
Estabelecimento de parcerias com indústrias de fármacos e cosméticos
Comercialização da primeira tonelada de baru
Comercialização de mais de 1.500 mudas de árvores nativas
Início da operação com fava d’anta
Abertura da filial da Vista Produtos Sustentáveis em Vila Boa
Projeto do novo viveiro com capacidade para mais de 500 mil mudas
Projeto de maquinário de alta capacidade com Embrapii, Sebrae e IFPB
Desenvolvimento de nova solução IoT de rastreabilidade com o CPQD
Projeto de pesquisa com a UFPI sobre uso da polpa do baru na suplementação animal
Participação da Bio2me no Panela Nestlé
Sombra e castanha à vontade
Imagem capturada por drone na Fazenda Barbosa, localizada em Brejo (MA) (Imagem: Bio2me)
Na propriedade do casal Luis Fernando Devicari e Viviana Barbosa, em Brejo (MA), a inserção do baru na paisagem foi vista como positiva não só para extração de castanha, mas para melhorar o sombreamento do gado, submetido a temperaturas que podem chegar aos 40ºC no verão. Ele geógrafo, ela veterinária, decidiram diversificar a atividade na fazenda de mil hectares e implantaram o sistema de integração lavoura-pecuária-floresta (ILPF), rotacionando soja, milho, boi, ovinos e nativas.
Há 14 anos à frente da gestão do negócio, o casal introduziu o elemento florestal na fazenda oito anos atrás para melhorar o conforto térmico. Desde então, eles têm cultivado espécies nativas do Cerrado, como fava de bolota e fava d’anta (indicadas para sombra e suplementação de ovinos), além de pau ferro, jurema e ipê (ideais para madeira). Plantas como sabiá e unha de gato foram escolhidas para construção de cercas. A adição do baru foi um passo mais recente, depois do contato com a Bio2me.
“Temos uns 50 baruzeiros plantados e torcemos para que eles entrem como sombra, além de produzir castanha que possa ser colhida pelas comunidades do entorno. Na região, temos comunidades de origem indígena, que praticam a agricultura de forma rudimentar e não têm assistência técnica. Por isso, o programa de capacitação da Bio2me também chamou nossa atenção”, diz Devicari.
Em conjunto com a startup, foram selecionadas três comunidades para participar da iniciativa, com 15 pessoas de cada uma, somando 45 no total. A capacitação está programada para acontecer até outubro e os produtores do Sul, que migraram para o Maranhão em busca de novas oportunidades, estão otimistas com as possibilidades que se abrem.
“A Bio2me não era o que a gente estava procurando, mas, numa viagem com o Cláudio para uma imersão do Programa Soja Sustentável do Cerrado, a gente começou a falar dos custos de manter a floresta em pé. Contei para ele sobre nosso renque de nativas, e aí ele mencionou o baru, que eu só tinha comido uma vez, em Goiás. Foi então que vimos mais uma chance de rentabilizar o que nossa floresta produz”, diz Luis Fernando Devicari, convertido há anos ao ILPF. “Na soja e no boi, a gente já contabiliza os benefícios que o ILPF proporciona. De oito anos para cá, a gente passou a colher 7,8 sacas de soja a mais por hectare graças a esse sistema e a ter 45 kg de carne a mais por cabeça abatida”, explica.
Fotografia tirada em Diamantino (MT), da esq. para a dir.: Cláudio Fernandes, Genilson de Jesus e a produtora rural Lígia Pedrini (Crédito: Bio2me)
Em Diamantino (MT), a produtora Lígia Pedrini – que tem a propriedade majoritariamente fechada, com 150 hectares de lavoura, 20 hectares em implantação de eucalipto e 1.430 hectares de reserva legal e área de preservação permanente – viu na Bio2me uma nova possibilidade de geração de receita. Com o intuito de manter a fazenda Pedrini Agro como está, ela espera que, num primeiro momento, a renda com o baru cubra despesas com impostos e, no futuro, gere lucro. “Eu penso que inovação se faz no longo prazo e nosso projeto com a Bio2me é de longo prazo”, afirma.
Depois de ouvir um pitch da startup, ela conta que ficou positivamente impactada com a ideia de verticalizar a cadeia do baru. “A gente sente falta de soluções para rentabilizar a floresta em pé. Explorar os frutos e manejar a área é uma atividade complexa, porque precisamos criar uma cadeia do zero, e ficou claro para mim que a Bio2me consegue criar e verticalizar essa cadeia”, destaca.
Para Lígia, a visão tecnológica da startup era fundamental e se alinhava com os objetivos do seu negócio: “Eu sei de antemão quais áreas não serão abertas. Dessa forma, podemos escolher e mapear onde ficarão as árvores para facilitar o trabalho dos coletores depois”. Utilizando um mapeamento realizado por drone, que tirou mais de 30 mil fotos da fazenda de Lígia, a Bio2me definiu o local para plantio de 200 mudas de baru na Pedrini Agro.
Lígia pretende adotar um modelo de negócio em que a atividade fique sob a responsabilidade da startup, enquanto ela recebe a remuneração pela produção. “Não vejo o baru como nosso carro-chefe, mas vejo sim a fazenda servindo de modelo para outras que estão no entorno, porque Diamantino tem potencial para criar um polo de produção de bioativos e fortalecer a nossa comunidade”, diz.
Da esq. para a dir. Walter van Halst, produtor rural integrante do PSSC, e Claudio Fernandes, fundador da Bio2me (Foto: PwC Agtech Innovation)
No Tocantins, o case do produtor Walter van Halst repete em certa medida a história do próprio pai do empreendedor da Bio2me. A 60 km da capital Palmas, a Fazenda Bacaba, localizada em Aparecida do Rio Negro (TO), é um oásis no Cerrado – onde a paisagem de espécies nativas convive com lavouras de soja, milho, feijão e gergelim. Do total de 5 mil hectares de terra da propriedade, 3 mil estão recobertos por vegetação original, por vontade do proprietário Walter van Halst, que foi comprando terras na região aos poucos, depois de decidir se fixar no Norte do Brasil, onde vive desde 2019.
A história de van Halst com o país, contudo, é mais antiga. Antes de se mudar para o Norte, ele foi revendedor de máquinas e sojicultor no Paraná por 30 anos. E, antes disso, foi funcionário de outro holandês de quem compraria as terras paranaenses, após trabalharem juntos de 1985 a 1992. O patrão foi um grande mentor, acolhendo-o quando ainda era um jovem estagiário de 23 anos, recém-formado em Agronomia de Culturas Tropicais em uma universidade pública da Holanda. O curso era remanescente da época colonial holandesa, embora àquela altura a Holanda já não tivesse mais colônias na África nem nas Américas.
Durante seu estágio no Paraná e, depois no Paraguai, van Halst presenciou um momento de abertura de áreas, em que a floresta desmatada dava lugar ao gado e à soja. Depois de se fazer no Sul, o estrangeiro, que havia chegado ao Brasil sem qualquer patrimônio, passou a diversificar seus negócios. Foi assim que comprou suas primeiras terras no Tocantins, em 2003.
“Minha sorte foi a minha formação. Quando você chega num país sem nada e pode devolver alguma coisa, é muito gratificante. Eu escolhi dar minha retribuição deixando a floresta em pé. É bom para mim, para o país, para a humanidade”, reflete. A meta do ex-produtor, hoje arrendador de uma pequena parcela da fazenda para a soja, é rentabilizar a floresta em pé. Um voo de drone realizado pela startup na fazenda em breve revelará o potencial da área para exploração sustentável de riquezas naturais, como baru, fava-d'anta, pequi e jatobá.
“Nos EUA e na Europa, o agricultor não precisa preservar nada, e esse é um dever do poder público. No Brasil, é dever do produtor, e não é certo não sermos recompensados financeiramente. A floresta pode gerar renda e, se o Cerrado estiver gerando algum crédito de carbono, essa é outra oportunidade que eu quero aproveitar”, diz.
A expectativa é que as imagens do drone apontem onde estão os clusters com mais árvores fáceis de acessar. Em paralelo, planeja-se formar um grupo de 25 coletores que trabalharão não apenas na sua fazenda. “Pensamos em atrair para o curso famílias que tenham suas próprias áreas de floresta, para que elas gerem renda extra também”, explica o produtor, que vê na capacitação de pessoas uma ferramenta para transformar vidas.
Mesmo antes da chegada da Bio2me, van Halst e sua esposa já defendiam essa causa, mantendo até mesmo um projeto de inclusão digital com cursos gratuitos do Sebrae e do Senac para jovens. “Em média, recebemos anualmente 150 jovens com mais de 12 anos para fazer cursos profissionalizantes em geral, mas com ênfase especial no agro. Formamos de auxiliares administrativos a operadores de trator”, observa.
A carência de mão de obra qualificada na região é só mais um dos problemas que ele considera que a Bio2me ajuda a resolver: “Uma certeza que eu tenho é que o futuro é da rotação de culturas. Não dá para ficar só na soja, como o Brasil ficou lá atrás na cana, na borracha. Eu sou agrônomo e a gente fala que, depois da leguminosa, o solo pede a vinda da gramínea, do boi. A pressão da monocultura pode não se sustentar no longo prazo. Precisamos de pesquisa, precisamos buscar alternativas na natureza, nas culturas do Cerrado”.
Desde a fundação do PwC Agtech Innovation, em 2017, o hub foi palco do nascimento e desenvolvimento de uma série de iniciativas inovadoras. No report completo, o leitor é apresentado a cinco cases envolvendo players da comunidade e do ecossistema como um todo.
Case Programa Soja Sustentável do Cerrado (PSSC): A sustentabilidade como motor da inovação
Um case de inovação aberta da bioeconomia: a Bio2me e os produtores de soja do Cerrado
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