Blockchain, cripto e tokens: soluções em busca de um problema ou pontos de virada para a agricultura?

Um dia, o PC e a internet já estiveram neste mesmo lugar e, agora, é a vez de novas tecnologias serem postas à prova

Outubro 4, 2022

 

Por Kieran Gartlan

Algo muito comum no dia a dia de um investidor de Venture Capital é se deparar com tecnologias e inovações que flertam com as demandas do mundo real, mas no fim das contas surgem como “soluções em busca de um problema”. O computador pessoal é um desses grandes exemplos, se considerarmos que essa tecnologia levou mais de 20 anos para, finalmente, conquistar o mercado. 

De fato, temos registro de quando tudo era um sonho. Um deles, que recomendo assistirem, é a entrevista de Bill Gates para Dave Letterman, sobre quão útil seria um PC ou mesmo a internet. Isso lá atrás, em 1995. Na entrevista, Letterman logo pergunta para o ícone da informática: “Bill, o que posso fazer com isso?”, apontando para um PC. Ao que Gates responde que o PC talvez pudesse servir para o entrevistador ouvir um jogo de beisebol. “Já ouviu falar no rádio?”, Letterman disse então. Foi quando Bill tentou ir além, e acrescentou que ele poderia ouvir o jogo sempre que quisesse. Mas Dave não se deu por vencido e seguiu questionando: “Que tal usar um gravador?”. 


Moral da história? Mesmo Bill Gates, que trabalhava com computadores pessoais desde 1975, estranhamente não tinha um tom claro sobre as vantagens de usar um PC e não conseguiu convencer Letterman de que o computador pessoal tinha mesmo uma razão de ser. Apenas alguns anos depois, o computador pessoal e a internet se tornaram parte integrante da vida cotidiana das pessoas, porém, é fascinante pensar que Bill Gates não tinha uma visão clara das oportunidades e disrupções que estavam por vir. O que aprendemos é: geralmente, o mercado determina como será usada uma tecnologia, e não seu inventor.

Outro exemplo peculiar, nessa mesma linha, é o do QR code, criado em 1994 e que só deslanchou de verdade durante a pandemia — 26 anos depois — quando veio a necessidade de usar cardápios digitais nos restaurantes. O principal objetivo de uma tecnologia deveria ser resolver problemas, porém, às vezes o problema original não é grande o suficiente, ou ainda não existe. Como Walter Isaacson diz em seu excelente livro The Innovators: “A rua encontra seu próprio uso para as coisas”.

Rico em ativos, pobre em capital

No mundo agrícola não faltam problemas, o que é um ônus e um bônus para os empreendedores. De um lado, eles têm demandas de sobra. De outro, precisam encontrar os problemas mais urgentes para resolver.

No Brasil, um desses problemas críticos é o acesso a crédito, que pode fazer o agricultor perder o sono, caso não consiga plantar a tempo ou comprar insumos para proteger suas lavouras na janela ideal. Muitas startups já estão olhando para esse desafio, como a TerraMagna, primeira investida do The Yield Lab no Brasil. Gosto desse exemplo porque é a história clássica de uma solução que resolve um problema e não o contrário. As tecnologias utilizadas pela TerraMagna, de GPS e imagens de satélite, existem há décadas, e a inovação na sua proposta de geração de valor, tanto pela aplicação no campo como pelo modelo de negócios atrelado à análise do risco de crédito.

A forte demanda por capital na agricultura não é exclusividade do Brasil. A atividade é rica em ativos e pobre em recursos para fazer a roda girar no mundo inteiro. Fato é, que isso influencia muito o “quem pratica” e “como pratica” a agricultura. Há uma barreira de entrada considerável para aqueles que não têm uma origem agrícola. E mesmo que você tenha a sorte de ser dono ou herdeiro de terras, terá que enfrentar altos custos operacionais, incluindo gastos com maquinário, compra de animais e insumos. 

O ciclo do plantio à colheita pode levar vários meses ou anos em alguns casos (culturas perenes) para gerar lucro, com o agravante de produzir pouco fluxo de caixa mês a mês. Encontrar uma solução para esse problema em particular pode mudar o jogo e a forma como produzimos alimentos no futuro.

A tokenização e a liquidez

Com a chegada do blockchain, cripto e metaverso, é natural haver novos burburinhos no mercado sobre o impacto e utilidade dessas tecnologias, como um dia foi com a internet. E, olhando agora, na minha visão, o que as tecnologias digitais podem ajudar a resolver na agricultura é esse intrincado quebra-cabeças da riqueza de ativos e escassez de capital de giro. Aí vale falar da tokenização. 

A principal vantagem da tokenização é que ela permite criar a propriedade fracionada de ativos caros e com pouca ou nenhuma liquidez. O processo envolve a emissão de tokens digitais no blockchain (um livro ou registro digital seguro), que representam ativos físicos subjacentes. 

O ativo pode ser dividido em quantas partes ou frações quanto forem necessárias, dando acesso a uma gama muito maior de investidores. Comparados aos ativos reais, os tokens têm muito mais liquidez e podem ser transferidos facilmente, eliminando a dependência de intermediários, e, por isso mesmo, a um custo menor — ao passo que o blockchain os torna seguros e transparentes.

Sem aprofundar muito na tecnologia, posso dizer, sem sombra de dúvida, que os tokens já estão sendo usados de diversas maneiras em outros mercados com sucesso, é o caso do setor imobiliário e de obras de arte. Nestes dois casos, as pessoas compram os chamados “security (ativo) tokens” na expectativa de que o ativo subjacente aumente de valor ao longo do tempo.

Outro tipo de token, batizado “utility token”, oferece um benefício futuro, como espaço publicitário gratuito no caso do token BAT ou taxas de câmbio mais baixas no caso do token FTX. Esse tipo de token pode ser muito interessante também para aqueles que desejam receber entregas futuras de commodities agrícolas. Isto permitiria tornar os mercados físicos destes produtos mais líquidos e, consequentemente, baratear mecanismos de hedge (mecanismo de proteção de variação de preços) e simplificá-los para uso massivo entre os agricultores.

Seja como for, a tokenização é um meio para que os agricultores, acima de tudo, usem melhor os seus ativos (como terras, máquinas, gado e produção futura) como garantia, criando uma segurança financeira muito maior na condução de seus negócios. Além, é claro, de usufruírem dos ganhos indiretos de uma agricultura mais transparente e responsável.

Onde estamos agora

Falamos de blockchain, criptomoedas e tokens digitalizados desde 2008, embora valha a pena fazer a ressalva de que a tecnologia por trás deles melhorou consideravelmente de lá para cá. Mas voltando à comparação com a internet, ainda é como se estivéssemos no início da década de 1990 em termos de desenvolvimento de mercado para esse tipo de ferramenta. É dizer que a maioria das pessoas, como aconteceu com Letterman, ainda não conhece o propósito ou os principais benefícios disso, mas que o cenário está começando a mudar.

Apesar de existirem questões legais e regulatórias a serem resolvidas em torno das criptomoedas e do blockchain, a transformação digital está acontecendo em um ritmo muito mais rápido do que a adoção da internet nos anos 90.

A tokenização já avança em alguns setores, como o mercado imobiliário e cultural, e no espaço agrícola, são várias as startups desenvolvendo soluções usando blockchain e tokens. Entre elas, estão: a Agree Market e Ucropit (que integram o portfólio do  The Yield Lab Latam) e outras como Agrotoken, MasterBarter e SpaceVis. Mesmo a Embrapa, estatal de pesquisa agrícola, lançou um projeto baseado em blockchain envolvendo a cadeia da cana-de-açúcar. 

É fato que estamos começando a ver algumas grandes mudanças na forma como o risco de crédito agrícola é analisado no Brasil e como os mercados podem ganhar mais liquidez, e isso pode fazer parte de uma revolução muito maior de como os alimentos são financiados, produzidos e comercializados. Agora, é viver para ver.

Kieran Gartlan é diretor do The Yield Lab Latam. Há 25 anos, atua na América Latina nos setores financeiro, de commodities e capital de risco (Venture Capital). Sua experiência também passa pela área de empreendimentos corporativos, inovação, mentoria de startups e investimentos.

*As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor e não refletem necessariamente a visão do Agtech Innovation News.

Contatos

Maurício Moraes

Maurício Moraes

Sócio e líder do setor de Agronegócio, PwC Brasil

Dirceu Ferreira Junior

Dirceu Ferreira Junior

COO do PwC Agtech Innovation e sócio, PwC Brasil

Siga-nos